A questão das terras indígenas nas discussões de elaboração
da Lei de Terras de 1850.
Por Rodrigo Sérgio Meirelles Marchini
Introdução
A Lei n. 601 de 1850, conhecida como Lei de Terras foi a primeira lei
no Brasil a tratar da matéria fundiária como um todo, classificando
todos os tipos de ocupação no Brasil, indicando se são justas,
legais e quais garantias têm. A Lei de Terras de 1850 inaugura um
novo sistema fundiário para o Brasil com o fim do antigo sistema
colonial de sesmarias.
A Elaboração da Lei de Terras começou oficialmente em 1842, no
Conselho de Estado, e só foi terminar em 1850, depois de passar duas
vezes pela Câmara dos Deputados e uma vez pelo Senado
Além de servir como ferramenta para a interpretação histórica da
Lei de Terras, as suas discussões de elaboração mostram como
classe política analisava a situação anterior a Lei de Terras,
pois eles justificam a nova lei por uma necessidade de mudança do
regramento jurídico da época.
Esta pesquisa se realizou para fundamentar a nossa Dissertação, que
discute a questão de terras indígenas durante o período
Republicano. Durante a pesquisa aproveitamos para compilar todas as
discussões parlamentares, que estão dispersas em vários livros, em
um único arquivo para assim facilitar futuras pesquisas.
A nossa pesquisa da Lei de Terras se fundamentou no trabalho de
MACHADO e SILVA, Claudia Christina, Escravidão e Grande Lavoura: o
Debate Parlamentar sobre a Lei de Terras (1842 - 1854), Dissertação
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História,
Departamento de História, Setor de Ciências Humanas Letras e Artes,
Universidade Federal do Paraná, como requisito parcial à obtenção
do título de mestre em História. Professor Dr: Luiz Geraldo Silva,
Curitiba, 2006.
Este texto pretende destacar as principais discussões na Câmara dos
Deputados e no Senado do projeto da Lei de Terras sobre as terras
indígenas em que vemos que a opinião dominante é que a ocupação
indígena original não conta com nenhuma proteção específica. Para outras informações sobre a legislação brasileira voltada ao tratamento dos índios clique aqui.
O medo de invasões indígenas.
Uma das finalidades da Leis de Terras é legitimar as posses que
estão irregulares e revalidar as sesmarias. Para tanto o projeto da
lei impunha dois requisitos: cultura efetiva e morada habitual.
Entretanto, os parlamentares discutem se não haveria fatos que
pudessem escusar a falta de algum desses requisitos e um dos fatos
alegados para a escusa é a invasão dos indígenas.
O deputado Nabias, logo no início da discussão do projeto, na
Câmara, já expressa o temor na colonização para os estrangeiros,
frente ao perigo de ataques indígenas:
"(...) entretanto a estrada é nova, poucos povoadores tem,
por toda a parte ha muito receio, mesmo talvez ainda de muitas tribus
que possão accometter os viandantes, e as pessoas que forem para
alli estabelecer-se."(Anais da Câmara dos Senhores Deputados
(1843), t. 2, Rio de Janeiro, Tipografia da viúva Pinto & Filho,
1883, sessão de 24 de julho de 1843, p.396. Compilação
das discussões de elaborações da Lei de Terras 1850, p.42).
O deputado Franco de Sá, falando sobre a dificuldade de se
aproveitar as sesmarias, fala de hipóteses que poderiam escusar a
sua falta de cultivo:
"(...) se o sesmeiro, tendo obtido uma sesmaria, além
daquella onde se acha estabelecido, depois se reconhecesse que se
achava infestada por indios selvagens. Esta hypothese se dá muitas
vezes na minha provincia; o sesmeiro não podia cultivar por um justo
impedimento, por não ter bastante garantia do governo contra esses
inimigos internos.". (Anais da Câmara dos Senhores Deputados
(1843), t. 2, Rio de Janeiro, Tipografia da viúva Pinto & Filho,
1883, sessão de 31 de julho de 1843, p.496. Compilação
das discussões de elaborações da Lei de Terras 1850, p.111).
Para Franco de Sá não são os proprietários de sesmarias que estão
invadindo as terras indígenas, mas são os índios que estão
“infestando” as sesmarias.
Em outro discurso, Franco de Sá volta ao mesmo assunto:
"(...) ou finalmente por impossibilidade, qual a do
enfestamente de indios selvagens.". (Anais da Câmara dos
Senhores Deputados (1843), t. 2, Rio de Janeiro, Tipografia da viúva
Pinto & Filho, 1883, sessão de 14 de agosto de 1843, p.741.
Compilação
das discussões de elaborações da Lei de Terras 1850, p.172).
O deputado Souza Franco diz que também os posseiros sofrem com os
índios:
"Mas a hypothese do temor dos indios? E por que não os
receiárão os posseiros? Ha sempre motivo de preferencia em favor
destes. (...) Nesse caso, se tão bom uso sabem fazer de suas poucas
forças, por isso mesmo merecem o terreno que cultivão de que tirão
lucro em beneficio do paiz, e sobre o qual fizerão sacrificios, nem
mesmo os atemorisando os indios.". (Anais da Câmara dos
Senhores Deputados (1843), t. 2, Rio de Janeiro, Tipografia da viúva
Pinto & Filho, 1883, sessão de 31 de julho de 1843, p.499.
Compilação
das discussões de elaborações da Lei de Terras 1850, p.114).
Para Franco de Sá a preferência deve ser para os donos de sesmarias
e para Souza Franco a preferência deve ser dos posseiros. Todavia
eles concordam em um ponto: a posse do não-índio é preferida à do
índio. No senado, os oradores repetem a mesma ideia. O senador Costa
Ferreira, por exemplo, diz:
"Se o Estado, que tinha obrigação de defender as minhas
terras dos inimigos internos, as não defendia, se eu não as podia
cultivar, porque o gentio não mo consentia, com que justiça se me
privará do meu direito de proprietário, só por não haver cumprido
uma condição que me era impossível cumprir!". (Anais do
Senado do Império do Brasil (1845), vol.1, Rio de Janeiro, Diretoria
de Anais e Documentos parlamentares, 1950, sessão de 10 de janeiro
de 1845, p. 27. Compilação
das discussões de
elaborações da Lei de Terras 1850, p.329.)
Para Costa Ferreira, o seu direito de proprietário prevalecia sobre
o direito do índio, e ainda dá a opinião que:
"Creio, senhores, que não há terras nenhumas por cultivar
senão as que são infestadas pelos gentios.". (Anais do Senado
do Império do Brasil (1845), vol.1, Rio de Janeiro, Diretoria de
Anais e Documentos parlamentares, 1950, sessão de 10 de janeiro de
1845, p. 28. Compilação
das discussões de elaborações da Lei de Terras 1850, p.330.)
Ainda, em outro dia, Costa Ferreira, comentando o requisito de estar
a terra cultivada para o cidadão não perder sua propriedade, diz:
"(...) o governo, que deverá proteger o cidadão, em vez de
cumprir este dever, defendendo a propriedade e vida dele contra as
frechas e devastação dos gentios, há de privá-lo dessa mesma
propriedade que ele deverá proteger!". (Anais do Senado do
Império do Brasil (1847), vol.1, Rio de Janeiro, Diretoria de Anais
e Documentos parlamentares, 1950, sessão de 15 de maio de 1847, p.
79. Compilação
das discussões de elaborações da Lei de Terras 1850, p.379.)
No mesmo dia, também, acrescenta:
"(...) com a falta de braços e as invasões dos gentios, as
esperanças dos lavradores murcharam e o valor das terras diminuiu.
(...) O governo, que tinha obrigação de defendê-los dos seus
inimigos,(...) deixou-os expostos às frechas dos gentio. (...) Como
há de esses lavradores cultivar dentro de 4 anos a décima parte das
suas terras? Porventura o governo ajudá-los-á a repelir os gentios
que as infestam?". (Anais do Senado do Império do Brasil
(1847), vol.1, Rio de Janeiro, Diretoria de Anais e Documentos
parlamentares, 1950, sessão de 15 de maio de 1847, p. 86. Compilação
das discussões de elaborações da Lei de Terras 1850, p.386.)
O senador Vergueiro concorda em termos com Costa Ferreira. Diz que
deve haver um artigo específico para o caso:
"O SR. COSTA FERREIRA: - Como se haviam de cultivar terras
infestadas pelo gentio?
O SR. VERGUEIRO: - Pois ofereça o nobre senador emenda que diga
respeito às sesmarias ocupadas pelo gentio; mas o Senado não se
deve regular por este fato particular na fatura de uma lei geral.".
(Anais do Senado do Império do Brasil (1847), vol.1, Rio de Janeiro,
Diretoria de Anais e Documentos parlamentares, 1950, sessão de 20 de
maio de 1847, p. 149. Compilação
das discussões de elaborações da Lei de Terras 1850, p.412.)
Para esses senadores as terras ocupadas por índios não tem nenhuma
proteção e estão impedindo que os sesmeiros e possuidores cultivem
as terras da melhor forma possível.
Desse entendimento faz uma ressalva o senador Clemente Pereira:
"Relativamente às sesmarias que são ocupadas por indígenas,
sempre me pareceu que se devia fazer algum artigo excepcional,
porque, a falar a verdade, se elas são ocupadas por selvagens
indígenas, seus donos, durante este impedimento não podem perder o
seu direito. Se o nobre senador oferecer uma emenda neste sentido,
ela há de ser por mim defendida; mas sempre é necessário que seja
acompanhada de alguma circunstância que mostre que tais terras foram
adquiridas com justo título.". (Anais do Senado do Império do
Brasil (1847), vol.1, Rio de Janeiro, Diretoria de Anais e Documentos
parlamentares, 1950, sessão de 20 de maio de 1847, p. 151.
Compilação
das discussões de elaborações da Lei de Terras 1850, p.415.)
Clemente Pereira faz uma distinção, que os outros senadores não
fazem: para ele só devem ser protegidas dos índios as propriedades
adquiridas com justo título.
Em outra sessão, o senador Vergueiro, explicando sua posição diz:
"Quanto ao infestamento de selvagens, este motivo tem algum
peso; mas tão-somente quando é posterior à concessão; porque se o
sesmeiro pediu a sesmaria quando o terreno estava infestado, deve
cumprir as condições com que aceitou a sesmaria, apesar do lugar
ser infestado por selvagens.".( Anais do Senado do Império do
Brasil (1850), vol.5, Rio de Janeiro, Diretoria de Anais e Documentos
parlamentares, 1950, sessão de 17 de julho de 1850, p. 304.
Compilação
das discussões de elaborações da Lei de Terras 1850, p.802.)
Para Vergueiro a posse do índio anterior à concessão da sesmaria,
igualmente, não deve ser respeitada, e não escusa a falta de
cultura, pois a sesmaria foi aceita naquelas condições. No entanto,
se a invasão de índios ocorresse posteriormente à concessão da
sesmaria isso seria uma escusa suficiente para explicar a falta de
cultura na propriedade. O senador Manoel, explica que há várias
escusas possíveis para a falta de cultura, incluindo a infestação
dos índios:
"(...) ao caso em que a falta de condição da cultura
tivesse por motivo o infestamento de selvagens.". ( Anais do
Senado do Império do Brasil (1850), vol.5, Rio de Janeiro, Diretoria
de Anais e Documentos parlamentares, 1950, sessão de 17 de julho de
1850, p. 312. Compilação
das discussões de elaborações da Lei de Terras 1850, p.810.)
Contudo, diz o senador d. Manoel, que há muitos outros fatos que
podem escusar a falta de cultura, e que a previsão de todos os fatos
seria impossível. Assim ficaria melhor se fosse feito em regulamento
do governo:
"Já se vê que o projeto não faz menção de muitos outros
casos, os quais naturalmente hão de ficar para serem compreendidos
nos regulamentos que o governo tiver de expedir para a boa execução
da lei.". ( Anais do Senado do Império do Brasil (1850), vol.5,
Rio de Janeiro, Diretoria de Anais e Documentos parlamentares, 1950,
sessão de 17 de julho de 1850, p. 313. Compilação
das discussões de elaborações da Lei de Terras 1850, p.811.)
E assim, é aprovado o projeto sem mencionar que a invasão de
indígenas seria uma escusa razoável para a falta de cultura e
morada habitual. Todavia, fica entendido que tal escusa é justa e
seria prevista em regulamentação especial.
As terras das fronteiras.
Sobre as terras das fronteiras há uma grande discussão na Câmara
dos Deputados logo depois da apresentação do projeto.
Já no projeto inicial, há a exceção em relação às terras
devolutas limítrofes da regra de só se permitir vender terras
devolutas, pois aquelas poderiam ser concedidas gratuitamente.
É o deputado Souza Franco que começa a questionar o projeto, nesse
tema:
"(...) Esta disposição e intenção não póde deixar de
ser louvada quando considerada pelo lado político; mas é
irrealisavel em si, porque não ha meios hoje, ou são excessivamente
dispendiosos os precisos para fazer habitar essa zona, tão remota
das mais povoações do imperio, tão distante dos mercados do paiz,
e é até prejudicial, emquanto se oppõe á concentração da
população, e tende a tornar como inuteis para a riqueza do paiz os
braços assim desterrados para tão longas distancias.". ( Anais
da Câmara dos Senhores Deputados (1843), t.2, Rio de Janeiro,
Tipografia da viúva Pinto & Filho, 1883, sessão de 21 de julho
de 1843, p.350. Compilação
das discussões de elaborações da Lei de Terras 1850, p.20.)
Souza Franco fala que por um lado seria bom ter brasileiros nas
fronteiras para defendê-las, mas por outro lado o custo de levar às
fronteiras habitantes seria muito alto.
O deputado Ferraz fala em proteger militarmente as fronteiras:
"Mas eu entendo ainda que deve haver uma certa reserva nestes
terrenos, e que em vez de se darem sem distincção a nacionaes,
devem nelles estabelecer-se colonias militares que podem servir para
a defesa da fronteira.". ( Anais da Câmara dos Senhores
Deputados (1843), t.2, Rio de Janeiro, Tipografia da viúva Pinto &
Filho, 1883, sessão de 21 de julho de 1843, p.353. Compilação
das discussões de elaborações da Lei de Terras 1850, p.23.)
A idéia de se aliar aos povos indígenas para proteger as
fronteiras, como se tentou fazer no período colonial, não passou
pelos redatores originais do projeto. Contudo, pensando que isso
podia ser sugerido, o deputado Sebastião do Rego defende que não
poderia se dar terras das fronteiras aos índios. Suas palavras são:
"(...) parece mais impolitico estabelecer colonias de
indigenas nesta zona limitrophe do que de estrangeiros de nações
differentes daquella que habita o paiz visinho, porque os
estrangeiros com facilidade podem ser angariados com qualquer coisa.
Se queremos fazer com que nossas fronteiras sejão seguras, não
devemos fazer nellas colonisação de indigenas selvagens, porque é
mais perigoso.". ( Anais da Câmara dos Senhores Deputados
(1843), t.2, Rio de Janeiro, Tipografia da viúva Pinto & Filho,
1883, sessão de 24 de julho de 1843, p.393. Compilação
das discussões de elaborações da Lei de Terras 1850, p.39.)
Para esse deputado seria pior ter índios nas fronteiras do que ter
estrangeiros.
O deputado Nabias é o único que levanta a voz, para defender a
idéia de se ter colônias de índios nas fronteiras:
"O nobre deputado que ha pouco fallou disse que considera a
colonisação dos indigenas nas extremas do Brazil como mais perigosa
ainda do que o estabelecimento de estrangeiros nesses lugares. Não
sei sei esta asserção do nobre deputado póde ser admittida, não
sei se nós ao contrario não devemos querer nesses lugares, aliás
despovados, um nucleo, um centro, no qual se reunão os indigenas do
imperio.". ( Anais da Câmara dos Senhores Deputados (1843),
t.2, Rio de Janeiro, Tipografia da viúva Pinto & Filho, 1883,
sessão de 24 de julho de 1843, p.396. Compilação
das discussões de elaborações da Lei de Terras 1850, p.42.)
Mas, Nabias não apresenta nenhuma emenda nesse sentido e o projeto é
aprovado sem nenhum artigo específico relacionando índios e as
terras das fronteiras.
Denúncia de violação dos direitos dos índios.
A opinião que parece predominar na Câmara, seguindo o entendimento
de D. João VI, é de que só interessa o índio pacífico e
submisso. Diz o deputado Nabias:
"Estou persuadido de que estes homens, catechisados,
civilisados, reunidos em qualquer ponto do Brasil, podem ser muito
uteis.". (Anais da Câmara dos Senhores Deputados (1843), t. 2,
Rio de Janeiro, Tipografia da viúva Pinto & Filho, 1883, sessão
de 24 de julho de 1843, p.396. Compilação
das discussões de elaborações da Lei de Terras 1850, p.42).
Para o deputado Nabias, não bastava que fossem civilizados, teriam,
também que ser reunidos em algum ponto do Brasil. Não era bom para
o império ter índios espalhados nas matas, em lugares de sua
escolha.
O deputado Souza Franco, discursando sobre o índio, explica:
"Ora tendo nós no imperio habitantes que têm direito ás
terras e as não sabem escolher, (...) preciso é que o governo do
paiz por elles escolha, (...) o que há é verdadeira troca com o que
elles habitão, possuem e lhes pertence, e que ha até vantagem em
ter entre nós estes individuos de que o paiz, ainda que com
trabalho, tira algum lucro, e póde tirar maior.". (Anais da
Câmara dos Senhores Deputados (1843), t. 2, Rio de Janeiro,
Tipografia da viúva Pinto & Filho, 1883, sessão de 26 de julho
de 1843, p.403. Compilação
das discussões de elaborações da Lei de Terras 1850, p.50).
Souza Franco, admite o direito do índio à terra, porém diz que
esse não sabe escolher uma terra e assim é o governo deve escolher
um lugar para ele se estabelecer em colônia, ficando sua terra
original para o governo. Porém, até ser realizada essa troca de
terrenos, não há nenhuma proteção das terras que esse deputado
diz pertencerem aos índios.
O deputado Alves dos Santos diz, sobre o projeto:
"(...) elle é assaz justificavel pelos fins a que se propõe.
Na verdade, facilitar a colonização estrangeira, creando fundos
para a sua introdução, garantir a indígena (...)". (Anais da
Câmara dos Senhores Deputados (1843), t. 2, Rio de Janeiro,
Tipografia da viúva Pinto & Filho, 1883, sessão de 08 de agosto
de 1843, p.661. Compilação
das discussões de elaborações da Lei de Terras 1850, p.50).
Para o deputado Alves dos Santos o índio é igualado ao imigrante
estrangeiro, visto que cabe ao governo decidir onde serão suas
colônias. O direito do índio limita-se a ter uma colônia. Seu
direito sobre as terras que ocupa originalmente não é garantido.
No Senado, mostra-se uma preferência em proteger os posseiros. O
senador Paula Souza diz:
"Os posseiros merecem sem dúvida as simpatias do Corpo
Legislativo, porque entendo que eles têm sido e continuam a ser os
mais úteis ao país. Vão descobrindo os melhores terrenos; começam
a morar neles; conhecem por experiência própria a bondade do
terreno e as vantagens que oferece, e depois atraem muita população,
e assim vão se povoando os nossos sertões.". (Anais do Senado
do Império do Brasil (1847), vol.2, Rio de Janeiro, Diretoria de
Anais e Documentos parlamentares, 1950, sessão de 19 de julho de
1847, p. 251. Compilação
das discussões de elaborações da Lei de Terras 1850, p.523).
Seguindo essa ideia, o senador Vasconcellos diz:
"Quantas vezes reservam-se duas ou três léguas de terras
para aldeamento dos indígenas que não se aldeiam em muitos anos, e
que por conseqüência servem para interpor um deserto entre morador
e morador, do que resultam grandíssimos inconvenientes(...)."
(Anais do Senado do Império do Brasil (1848), vol.4, Rio de Janeiro,
Diretoria de Anais e Documentos parlamentares, 1950, sessão de 31 de
agosto de 1848, p. 574. Compilação
das discussões de elaborações da Lei de Terras 1850, p.572).
Para Vasconcellos o índio tinha que ser aldeado. Quando não está
aldeado, compara sua terra a um deserto, deserto que atrapalha o
morador, que não é outro senão o posseiro.
A discussão da colonização e ocupação das terras devolutas
deu-se, também, por comparação com a colonização dos Estados
Unidos da América. Nesse tema diz o senador Hollanda Cavalcanti:
"O que fizeram os Americanos? A colonização da América do
Norte é a colonização do Brasil? É necessário estar muito
prevenido para não ver o que se passa no país. Como se povoou a
América? Como foi Guilherme Penn tomar posse do seu território?
Como progrediu a sua associação? ... Não foi até um terreno
limitado que ele comprou aos indígenas, reconhecendo até a
propriedade dos indígenas.?". (Anais do Senado do Império do
Brasil (1850), vol.6, Rio de Janeiro, Diretoria de Anais e Documentos
parlamentares, 1950, sessão de 02 de agosto de 1850, p. 31.
Compilação
das discussões de elaborações da Lei de Terras 1850, p.1037).
Hollanda Cavalcanti está dizendo que a colonização dos Estados
Unidos da América foi diferente da do Brasil. Lá o reconhecimento
da propriedade do índio chegou ao ponto de comprarem terras dos
índios. No Brasil não se comprou terras dos índios. O senador
Visconde de Abrantes, em resposta ao discurso de Cavalcanti, diz:
"Quereria o nobre senador dar a entender que hoje o governo
do Brasil devia também, como Penn, ir comprar terras aos índios
(...)? (...) seguimos o exemplo dos Estado Unidos quando queremos
extremar o domínio público do particular, e vender as terras
devolutas que temos (...). Seguimos à risca o exemplo dos Estados
Unidos, porque estes Estados não compraram terras a índios (...).
Em vez de comprar terras aos índios, sabe o senado que a União
Americana tem feito por muitas vezes guerras as tribos ou nações
índias,(...)". (Anais do Senado do Império do Brasil (1850),
vol.6, Rio de Janeiro, Diretoria de Anais e Documentos parlamentares,
1950, sessão de 03 de agosto de 1850, p. 42. Compilação
das discussões de elaborações da Lei de Terras 1850, p.1047).
Para o Visconde de Abrantes, o Brasil não deve seguir o exemplo dos
Estados Unidos da América em comprar terras de índios, mas, sim,
seguir o exemplo de guerrear com esses.
Quando a discussão volta para a Câmara dos Deputados, para aprovar
as alterações do Senado, o deputado Franco de Sá volta a comparar
a colonização brasileira com a colonização estadunidense:
"Quando nos Estados Unidos tratou-se da divisão das terras,
tratou-se tambem de verificar o domínio que os mesmos estados tinhão
sobre ellas; então reconheceu-se que parte dellas pertencião a
muitas tribus indianas, e com ellas fizerão tratados , para serem
consideradas comunidades differentes e independentes; ficárão com o
direito de viver nas terras que occupavão, (...)". (Anais da
Câmara dos Senhores Deputados (1850), t. 4, Rio de Janeiro,
Tipografia da viúva Pinto & Filho, 1883, sessão de 02 de
setembro de 1850, p.772. Compilação
das discussões de elaborações da
Lei de Terras 1850, p.1169).
Nos Estados Unidos foi reconhecido a plena capacidade dos índios ao
ponto de se convencionar tratados com eles como nações
independentes com o direito à terra. E compara com o Brasil:
"(...) isto aconteceu naquella nação, quando ainda estava
mais pequena do que a nossa, quando era menos civilisada do que ora
somos,(...) Os índios em muitas provincias do imperio, e
principalmente no Pará, occupão grande território, formão nações
independentes, algumas grandes e poderosas,(...) estes índios estão
senhores dessas terras, onde já ha um começo de cultura,
principalmente de raizes nutrictivas, e no meu modo de pensar, e no
pensar do povo americano do norte, não estão devolutas; porém o
projecto encara a questão por outro lado mui diverso.". (Anais
da Câmara dos Senhores Deputados (1850), t. 4, Rio de Janeiro,
Tipografia da viúva Pinto & Filho, 1883, sessão de 02 de
setembro de 1850, p.772. Compilação
das discussões de elaborações da Lei de Terras 1850, p.1169).
Para o deputado Franco de Sá, o projeto entende as terras indígenas
como terras devolutas. O melhor, para Franco de Sá, seria comprar as
terras dos índios para poder vendê-las como devolutas. O deputado
Vasconcellos, na mesma ocasião replica que são reservadas terras
para os índios no projeto. Argumento que não convence Franco de Sá,
que continua:
"A primeira cousa que se devia fazer era autorizar-se o
governo para comprar as terras possuidas e occupadas pelos indios,
(...) Somos proprietarios de uma grande porção de terras no Brazil,
porém os indios o são de outra, onde vivem e estão de posse.".
(Anais da Câmara dos Senhores Deputados (1850), t. 4, Rio de
Janeiro, Tipografia da viúva Pinto & Filho, 1883, sessão de 02
de setembro de 1850, p.773. Compilação
das discussões de elaborações da Lei de Terras 1850, p.1170).
O deputado Sayão Lobato ouvindo esse discurso diz:
"Já a conquista decidio desta questão.". (Anais da
Câmara dos Senhores Deputados (1850), t. 4, Rio de Janeiro,
Tipografia da viúva Pinto & Filho, 1883, sessão de 02 de
setembro de 1850, p.773. Compilação
das discussões de elaborações da Lei de Terras 1850, p.1170).
Para Sayão Lobato, não teria que se comprar terras de índios,
porque, anteriormente, já se conquistou a terra deles.
Depois, Franco de Sá, discutindo o artigo que impõe penas aos
posseiros que se apossarem de terras alheias diz:
"(...) o artigo impõe pena aos particulares que se apossarem
de terras alheias, ellas tambem poderião ser impostas ao governo
apossando se de terras pertecentes aos índios, se estes infelizes
encontrassem protectores que os africanos têm encontrado.".
(Anais da Câmara dos Senhores Deputados (1850), t. 4, Rio de
Janeiro, Tipografia da viúva Pinto & Filho, 1883, sessão de 02
de setembro de 1850, p.773. Compilação
das discussões de elaborações da Lei de Terras 1850, p.1170).
Assim, Franco de Sá denuncia o esbulho que se dará pelo projeto que
considera terras indígenas como devolutas e as manda vender para a
colonização estrangeira. E por fim, lamenta que, na época, não
exista defensores dos índios como há dos africanos escravizados.
Ainda no mesmo discurso, o deputado Nebias pergunta onde estão os
índios, o que Franco de Sá afirma que estão no Pará e em quase
todas as províncias do Império, declaração à que o deputado
Nebias responde dizendo que essas terras devem ser respeitadas.
Portanto, os deputados Nebias e Franco de Sá querem proteger as
terras indígenas, mas pela forte oposição do resto da Câmara não
apresentam nenhuma emenda nesse sentido.
Na sessão do dia seguinte o deputado Sayão Lobato toma a palavra
para replicar o discurso de Franco de Sá:
"O nobre deputado principiou por desconhecer o direito que
assistia á assembléa geral para dispôr de terras devolutas, porque
disse elle que no Brazil não existem terras devolutas, visto que não
forão ellas compradas aos indigenas, que erão os verdadeiros
senhores e possuidores.". (Anais da Câmara dos Senhores
Deputados (1850), t. 4, Rio de Janeiro, Tipografia da viúva Pinto &
Filho, 1883, sessão de 03 de setembro de 1850, p.785. Compilação
das discussões de elaborações da Lei de Terras 1850, p.1183).
Sayão Lobato reconhece que nas terras devolutas estão contidas as
terras indígenas, e continua:
"Realmente, foi necessário que ouvisse ao nobre deputado
para suppôr que pudesse haver uma opinião de que não é dado aos
poderes do estado tomar quaesquer disposições a respeito do sólo,
isto é, que dentro do Brazil quasi todo o terreno não pertence nem
ao estado, nem propriamente aos brazileiros civilizados que o
occupão!". (Anais da Câmara dos Senhores Deputados (1850), t.
4, Rio de Janeiro, Tipografia da viúva Pinto & Filho, 1883,
sessão de 03 de setembro de 1850, p.785. Compilação
das discussões de elaborações da Lei de Terras 1850, p.1183).
Para Sayão Lobato as terras indígenas são do Império que pode
dispor dessas como quiser. E explica como se deu a colonização do
Brasil:
"Seguramente foi a conquista o verdadeiro principio pelo qual
um povo se apropriou de terrenos que não tinha, e nelles se
constituio em grande associação. Ora, que os portuguezes
conquistárão os terrenos que hoje formão o estado do Brazil
ninguem o duvida; que o conquistárão as hordas selvagens que nenhum
direito certo, fixo, podião mesmo pretender nesses terrenos.".
(Anais da Câmara dos Senhores Deputados (1850), t. 4, Rio de
Janeiro, Tipografia da viúva Pinto & Filho, 1883, sessão de 03
de setembro de 1850, p.785. Compilação
das discussões de elaborações da Lei de Terras 1850, p.1183).
Sayão não reconhece a propriedade indígena. E depois, comenta o
estado atual das terras do Brasil:
"Em todo o caso os indigenas quasi que desapparecêrão do
solo do Brazil; apenas restão em algumas localidades fragmentos de
uma ou outra nação (...) se é possível reconhecer-se direitos em
barbaros vivendo mais ao modo de féras do que de homens. Emfim, Sr.
Presidente, é escusado gastar tempo em discutir esta questão
(apoiados);". (Anais da Câmara dos Senhores Deputados (1850),
t. 4, Rio de Janeiro, Tipografia da viúva Pinto & Filho, 1883,
sessão de 03 de setembro de 1850, p.785. Compilação
das discussões de elaborações da Lei de Terras 1850, p.1183).
E o discurso de Sayão Lobato é apoiado pelo Câmara. Desta maneira
a discussão passa sem qualquer outra menção às terras indígenas,
é aprovada sem se prever a compra de terras indígenas, e sem
nenhuma alteração frente à manifestação de Franco de Sá de que
a Lei considera as terras indígenas como devolutas.